A Delicada Fronteira entre o Dever de Corrigir e o Abuso Punível: Uma Análise da Tipicidade nos Crimes de Maus-Tratos e Lesão Corporal

A aplicação do Direito Penal exige uma análise criteriosa não apenas da conduta objetiva do agente, mas, sobretudo, do elemento subjetivo que a impulsionou. Em casos que envolvem a disciplina e a correção de crianças e adolescentes, especialmente no ambiente educacional, a distinção entre o animus corrigendi (intenção de corrigir) e o animus laedendi (intenção de lesionar) ou nocendi (intenção de prejudicar) torna-se um ponto nevrálgico para a correta tipificação dos fatos. Este artigo explora a atipicidade da conduta nos crimes de maus-tratos e lesão corporal quando ausente o dolo específico de causar dano, bem como os erros de tipificação comuns na acusação, como a aplicação indevida de qualificadoras e o afastamento do princípio da consunção.

1. Da Manifesta Atipicidade da Conduta pela Ausência de Dolo Específico

Para a configuração tanto do crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal) quanto do delito de maus-tratos (art. 136 do Código Penal), é indispensável a comprovação do dolo, ou seja, da vontade livre e consciente de produzir o resultado danoso.

  • No crime de lesão corporal, exige-se o animus laedendi, a intenção de ferir a integridade física ou a saúde de outrem.
  • No crime de maus-tratos, o tipo penal pune quem “expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”. O dolo, neste caso, é a vontade de expor a vítima a perigo, abusando dos meios de correção com a finalidade (ainda que deturpada) de educar ou disciplinar.

A ausência desse dolo específico de lesionar ou de expor a perigo a saúde da vítima afasta a tipicidade da conduta. Quando o agente atua com animus corrigendi et disciplinandi, ou seja, com a intenção de educar e disciplinar, sem a vontade de causar mal, a conduta não se amolda aos tipos penais mencionados.

A jurisprudência tem se debruçado sobre essa questão, absolvendo acusados quando não se comprova o dolo de maltratar. Em um caso análogo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro absolveu um pai acusado de maus-tratos, por entender que a repreensão à indisciplina do filho foi um ato pontual, dentro do limite do poder disciplinar, sem a intenção de colocar a vítima em risco (TJ-RJ — APELAÇÃO 0000178-74.2024.8.19.0010 — Publicado em 07/04/2025). O tribunal destacou que, para a configuração do crime, é indispensável a consciência do abuso cometido, o que não se verificou no caso.

É crucial diferenciar o ato de corrigir, ainda que por meios que possam ser considerados inadequados ou infelizes, do ato de agredir. A jurisprudência diferencia o dolo de maus-tratos daquele presente no crime de tortura, por exemplo, exigindo para este último a intenção de causar intenso sofrimento físico ou mental como fim em si mesmo (TJ-MG — Apelação Criminal 10145170208428001 — Publicado em 20/03/2019). Da mesma forma, para os maus-tratos, é preciso que a conduta ultrapasse o mero excesso e revele a vontade de expor a saúde da vítima a perigo.

Portanto, um episódio isolado na carreira de uma profissional dedicada, que age com o propósito de disciplina, sem a intenção de ferir ou maltratar, pode e deve ser considerado um fato atípico, impondo-se a absolvição sumária, nos termos do art. 397, III, do Código de Processo Penal.

2. Do Erro de Tipificação e da Aplicação do Princípio da Consunção

Mesmo que se entenda pela existência de relevância penal na conduta, é comum que a acusação incorra em erros técnicos que precisam ser corrigidos para garantir a justa aplicação da lei.2.1. A Qualificadora da Lesão Grave (Art. 136, §3º, CP)

A denúncia frequentemente qualifica o crime de maus-tratos pela ocorrência de lesão corporal de natureza grave (§2º do art. 136), ou gravíssima (§3º), que remete às hipóteses dos §§ 1º e 2º do art. 129 do CP. Contudo, se a prova técnica, como o laudo pericial, descreve lesões de natureza leve — como escoriações que não resultam em incapacidade para ocupações habituais, perigo de vida, debilidade permanente ou deformidade —, a imputação da qualificadora é manifestamente improcedente. A jurisprudência é clara ao afastar a qualificadora quando a lesão é leve, como se observa em decisões que analisam a gravidade da conduta (TJ-SP — Apelação Criminal 15249895320228260348 — Publicado em 12/07/2024).2.2. O Concurso de Crimes e o Princípio da Consunção

Outro erro comum é a imputação dos crimes de maus-tratos e lesão corporal leve em concurso material (art. 69 do CP), o que configura um inaceitável bis in idem (dupla punição pelo mesmo fato).

Princípio da Consunção, ou absorção, estabelece que o crime mais grave ou mais específico (crime-fim) absorve o crime menos grave (crime-meio) que constitui uma fase normal de sua execução. No caso em tela, se a lesão corporal leve foi o resultado direto do suposto abuso nos meios de correção, ela não pode ser punida autonomamente. O delito de maus-tratos, por ser mais específico, já abrange a possibilidade de violência em sua execução.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu nesse sentido, afirmando que, “constituindo o delito de lesão corporal meio necessário para a consumação do delito fim, que era os maus-tratos, o reconhecimento do princípio da consunção é medida que se impõe” (TJ-MG — APR 01436053720198130701 — Publicado em 29/09/2023).

Dessa forma, caso a ação penal prossiga, a acusação deve ser limitada, no máximo, ao crime de maus-tratos em sua forma simples (art. 136, caput, do CP), com a absorção do delito de lesão corporal leve.

Conclusão

A análise de casos envolvendo acusações de maus-tratos e lesão corporal no contexto educacional exige do operador do direito uma sensibilidade aguçada para diferenciar o dolo de lesionar do ímpeto de corrigir. A ausência do elemento subjetivo específico torna a conduta atípica, sendo a absolvição a medida de justiça.

Ademais, é imperativo que a acusação se atenha aos fatos e às provas, evitando imputações genéricas ou tecnicamente equivocadas, como a aplicação de qualificadoras sem o devido respaldo pericial e a inobservância do princípio da consunção, que veda a dupla punição pelo mesmo fato. A correta aplicação da lei penal não serve apenas para punir os culpados, mas, fundamentalmente, para proteger os inocentes de acusações infundadas ou desproporcionais.

Por Ricardo Cantergi

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