Resumo
O “tráfico privilegiado”, previsto no § 4º do art. 33 da Lei de Drogas, é um instrumento essencial para diferenciar o traficante contumaz daquele envolvido em uma situação eventual. Contudo, por anos, uma interpretação equivocada permitiu que inquéritos e ações penais em curso fossem usados como atalho para negar esse direito, presumindo uma “dedicação a atividades criminosas”. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Tema 1139, pôs fim a essa prática. Este artigo apresenta um estudo de caso real no qual a aplicação dessa tese em uma Ação de Revisão Criminal não só reverteu um erro judiciário, mas transformou radicalmente a pena de uma ré primária, ilustrando as lições práticas que advogados podem extrair dessa vitória.
1. O “Tráfico Privilegiado”: Um Alívio Necessário, Uma Negativa Frequente
A Lei de Drogas (Lei 11.343/06) prevê uma redução de pena de um sexto a dois terços para réus que atendam a quatro requisitos cumulativos: ser primário, ter bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas e não integrar organização criminosa. Essa figura, conhecida como “tráfico privilegiado”, é fundamental para garantir a proporcionalidade da pena.
O problema reside no terceiro requisito: a comprovação da “não dedicação a atividades criminosas”. Por muito tempo, magistrados presumiram essa dedicação com base na simples existência de outros inquéritos ou processos em andamento, mesmo sem condenação definitiva. Essa prática feria diretamente o princípio da presunção de inocência, pilar de nosso sistema de justiça.
2. A Virada Jurisprudencial: O Tema 1139 do STJ e a Exigência de Provas Concretas
Atento a essa violação, o STJ pacificou a controvérsia ao fixar a seguinte tese no Tema Repetitivo 1139:
“É vedada a utilização de inquéritos e/ou ações penais em curso para impedir a aplicação do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/06.”
Essa decisão reforçou um padrão fundamental: para negar o tráfico privilegiado, o Estado precisa apresentar provas robustas e concretas de que o réu faz do crime seu meio de vida, e não se basear em meras suspeitas ou processos sem desfecho.
3. Estudo de Caso: Da Condenação Injusta à Readequação da Pena
O Contexto do Erro
O caso em análise envolve X, uma mulher primária denunciada por tentar ingressar em um presídio com aproximadamente 37 gramas de maconha em 2019. Ao final do processo, ela foi condenada a uma pena severa: 5 anos e 10 meses de reclusão em regime inicial semiaberto, além de 590 dias-multa.
O juiz de primeira instância negou a aplicação do tráfico privilegiado sob a justificativa de que X possuía uma “condenação por crime análogo”. Contudo, uma análise atenta da certidão de antecedentes criminais revelava o oposto: à época dos fatos, a ré era tecnicamente primária e o processo mencionado ainda não havia transitado em julgado. Para agravar a situação, o advogado constituído na época não interpôs o recurso de apelação, o que tornou a condenação definitiva e consolidou um prejuízo irreparável.
A Estratégia: Revisão Criminal como Instrumento de Justiça
Diante de uma sentença condenatória transitada em julgado, porém manifestamente contrária à lei e à jurisprudência pacificada dos Tribunais Superiores, a única via processual para corrigir a injustiça era a Ação de Revisão Criminal.
A tese central da revisão foi direta: a sentença cometeu um error in judicando ao violar a Súmula 444 e o Tema 1139 do STJ. Argumentou-se que a negativa do privilégio se baseou em uma presunção ilegal de dedicação a atividades criminosas, quando, na verdade, todos os requisitos para a concessão do benefício estavam preenchidos.
O Resultado: O Reconhecimento do Direito e o Impacto na Vida da Ré
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em uma decisão tecnicamente precisa, acolheu os argumentos da defesa. O acórdão reconheceu que a revisão não se prestava a reexaminar provas, mas era o meio adequado para corrigir um erro de direito claro no cálculo da pena.
Ao aplicar o entendimento do Tema 1139, o Tribunal julgou procedente a revisão para:
- Reconhecer a causa de diminuição do tráfico privilegiado em sua fração máxima (2/3).
- Redimensionar a pena para 1 ano, 11 meses e 10 dias de reclusão.
- Alterar o regime inicial do semiaberto para o aberto.
- Substituir a pena de prisão por duas medidas restritivas de direitos: prestação de serviços à comunidade e pagamento de um salário mínimo.
4. Lições Práticas para a Advocacia Criminal
Este caso oferece duas lições cruciais para a defesa:
- Na Dosimetria da Pena: É preciso ser intransigente contra atalhos acusatórios. A negativa do tráfico privilegiado deve ser sempre combatida quando baseada em elementos que não sejam provas concretas da dedicação ao crime. A invocação direta do Tema 1139 do STJ é a ferramenta mais poderosa para rechaçar o uso indevido de registros processuais sem trânsito em julgado.
- Na Condução Processual: A falha em não recorrer de uma sentença desfavorável pode selar o destino do cliente. A gestão rigorosa de prazos e a comunicação transparente sobre a estratégia recursal são indispensáveis. Contudo, mesmo diante de um trânsito em julgado adverso, a Revisão Criminal (art. 621, I, do CPP) permanece como uma via potente para rescindir decisões que contrariem a lei ou a evidência dos autos.
Em suma, a correção obtida para X não foi apenas uma vitória técnica; foi a materialização da justiça. Ela demonstra que o conhecimento aprofundado da jurisprudência dos Tribunais Superiores e a escolha da ferramenta processual correta são capazes de reverter erros graves e reafirmar direitos fundamentais, garantindo que a pena seja, acima de tudo, justa e proporcional.
Por: Ricardo Cantergi. OAB/RS 89.476.
