O Réu Entra Inocente, Mas o Jurado Deve “Absolvê-lo”? Uma Análise Crítica do Terceiro Quesito do Júri

O Tribunal do Júri é, por excelência, o palco onde o direito encontra a consciência social. Ali, cidadãos comuns são chamados a decidir o destino de um semelhante. Contudo, por trás da aparente simplicidade de sua liturgia, escondem-se armadilhas semânticas com profundo impacto na justiça da decisão. A mais traiçoeira delas talvez resida no terceiro quesito, formulado nos seguintes termos: “O jurado absolve o acusado?”.

Esta pergunta, à primeira vista inofensiva, carrega em si o que se pode chamar de “o ovo da serpente”: uma inversão sutil, porém poderosa, da lógica fundamental do processo penal democrático.

O Ponto de Partida Inegociável: O Estado de Inocência

Todo e qualquer acusado adentra o plenário do júri em um estado inicial e inabalável de inocência. Este não é um benefício a ser conquistado, mas uma garantia constitucional. O réu não precisa provar que é inocente. O Ministério Público, como titular da acusação, é quem tem o dever integral de destruir essa presunção, apresentando provas robustas, inequívocas e suficientes para demonstrar a culpa para além de qualquer dúvida razoável.

O movimento processual, portanto, é unidirecional: parte-se da inocência e, somente se a acusação for bem-sucedida em seu ônus, chega-se à condenação. A absolvição não é uma ação; é a manutenção do estado original. É o reconhecimento de que a tentativa da acusação de alterar o status de “inocente” para “culpado” fracassou.

A Armadilha Semântica do Terceiro Quesito

Quando o Estado-Juiz pergunta ao jurado se ele “absolve o acusado”, ele subverte toda essa lógica. Analisemos a linguagem:

  1. O Verbo da Ação: O verbo “absolver” denota uma ação positiva, um ato de vontade. Implica que o jurado deve fazer algo para que o réu saia livre. Ele precisa conceder a absolvição. Isso é um contrassenso lógico e jurídico. Se o estado inicial é de inocência, o jurado não precisa “absolver” ninguém. Ele só precisa decidir se a acusação o convenceu a condenar.
  2. A Inversão do Ônus Psicológico: A pergunta força o jurado a raciocinar de forma invertida. Em vez de se perguntar: “As provas apresentadas pela acusação são suficientes para me fazer condenar este homem?”, ele é levado a pensar: “Existem motivos suficientes para que eu o absolva?”. Essa sutil mudança de perspectiva transfere, no plano cognitivo, o fardo da prova para a defesa. O jurado passa a buscar razões para absolver, quando deveria buscar razões para condenar.
  3. A Lógica Autoritária: Como você bem observou, trata-se de uma lógica autoritária. Ela exige que o jurado legitime a manutenção da liberdade do réu com uma afirmação (“SIM, eu o absolvo”). A ausência de provas deveria ser o silêncio que mantém o estado de inocência, e não um vácuo que precisa ser preenchido por um ato de absolvição. A dúvida, que deveria levar à absolvição (in dubio pro reo), torna-se um obstáculo, pois o jurado pode hesitar em “absolver” ativamente alguém sobre quem ainda paira alguma suspeita, por menor que seja.

Uma Alternativa Simples e Coerente: “Culpado ou Inocente?”

A solução para essa distorção é surpreendentemente simples e já adotada em outros sistemas, como o norte-americano. A questão posta ao jurado deveria ser direta e alinhada à presunção de inocência. Em vez de um quesito que induz a uma ação para manter o status quo, os jurados deveriam receber cédulas com duas opções claras:

  • CULPADO (Guilty)
  • INOCENTE (Not Guilty)

Neste modelo, a escolha por “CULPADO” representa o ato positivo de alterar o estado inicial do réu. É a declaração de que a acusação cumpriu seu ônus. A escolha por “INOCENTE”, por sua vez, significa simplesmente que a presunção de inocência não foi superada. O jurado não está “concedendo um perdão” ou “fazendo um favor”; ele está apenas afirmando que a narrativa acusatória não foi forte o suficiente para justificar uma condenação.

Essa mudança, longe de ser um mero preciosismo formal, realinharia o rito do júri com a Constituição. Ela eliminaria a “maneira matreira” com que a linguagem atual pode induzir o conselho de sentença a erro, garantindo que a condenação seja, de fato, o caminho a ser construído pela acusação, e não a absolvição o prêmio a ser conquistado pela defesa. Afinal, em um Estado de Direito, a liberdade é a regra, e a condenação, a exceção que exige prova. A linguagem da justiça deve refletir isso.

Por: Ricardo Cantergi

OAB/RS 89.476

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