A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), consolidada no Tema 1.318 dos recursos repetitivos, reacendeu um debate crucial no Direito Penal brasileiro: a possibilidade de a premeditação agravar a pena-base do réu, a título de valoração negativa da culpabilidade, sem que isso configure bis in idem. Embora o STJ tenha se esforçado para delimitar a aplicação dessa tese, buscando evitar a dupla punição, a discussão persiste e, para muitos juristas e operadores do direito, a linha entre a valoração legítima e o bis in idem é tênue e, por vezes, inexistente. Este artigo busca apresentar uma perspectiva crítica a essa jurisprudência, argumentando que a premeditação, em sua essência, já está intrinsecamente ligada ao dolo, e sua utilização como circunstância judicial autônoma para exasperar a pena configura, sim, uma indevida dupla valoração do mesmo elemento volitivo.
A Natureza do Dolo e a Inerência da Premeditação
O dolo, no Direito Penal, é a vontade livre e consciente de realizar a conduta típica. Ele se manifesta em duas modalidades principais: o dolo direto, em que o agente quer o resultado, e o dolo eventual, em que o agente assume o risco de produzi-lo. Em ambos os casos, há um processo mental que antecede a ação, um planejamento, uma deliberação, ainda que mínima. É nesse processo que a premeditação se insere. Premeditar significa pensar, planejar, antecipar a conduta criminosa. Não se trata de um elemento externo ao dolo, mas de uma de suas fases, um aprofundamento da intenção criminosa.
Quando o agente premedita o crime, ele demonstra um dolo mais intenso, mais arraigado, mas ainda assim, é dolo. A premeditação é a prova da vontade firme e persistente de cometer o delito. Punir a premeditação como uma circunstância judicial autônoma, além de já ter sido punida pelo próprio dolo, é incorrer em bis in idem. O grau de reprovabilidade da conduta já é aferido pela intensidade do dolo, que, por sua vez, é evidenciado pela premeditação. Valorar a premeditação separadamente do dolo é punir duas vezes o mesmo aspecto da conduta do agente: a sua intenção criminosa.
A jurisprudência do STJ recentemente fixada no Tema 1.318 admite que a premeditação possa ser valorada negativamente na primeira fase da dosimetria, desde que não seja automática nem inerente ao tipo penal. Contudo, tal posicionamento ignora que, mesmo quando não explícita no tipo penal, a premeditação é inevitavelmente uma manifestação do dolo. Portanto, separar a premeditação do dolo não deixa de ser um exercício artificial de valoração distinta para um mesmo fenômeno psicológico e jurídico.
O Bis In Idem e a Premeditação: Uma Dupla Punição Injusta
O princípio do non bis in idem é um pilar fundamental do Direito Penal, garantindo que ninguém seja punido duas vezes pelo mesmo fato. Ele se manifesta em diversas esferas, desde a proibição de um novo processo pelo mesmo crime após absolvição ou condenação definitiva, até a vedação da dupla valoração de uma mesma circunstância na dosimetria da pena. É justamente neste último ponto que a jurisprudência do STJ sobre a premeditação gera controvérsia.
Ao permitir que a premeditação seja valorada negativamente na culpabilidade, mesmo que não seja elementar do tipo penal ou pressuposto de agravante/qualificadora, o STJ abre uma porta para o bis in idem. A premeditação, como já exposto, é um aspecto da formação do dolo. Se o dolo já é considerado na tipicidade e na culpabilidade (como elemento subjetivo do tipo), valorar a premeditação separadamente significa considerar duas vezes a mesma manifestação da vontade criminosa. É como punir a intenção e, em seguida, punir o planejamento dessa intenção, quando o planejamento é parte integrante da intenção.
Juristas críticos a essa abordagem argumentam que a premeditação é um elemento que qualifica o dolo, tornando-o mais intenso, mas não um elemento autônomo que justifique uma valoração separada. A maior reprovabilidade da conduta, que o STJ busca justificar com a premeditação, já estaria contemplada na análise do dolo e de suas nuances. Ignorar essa interligação é desvirtuar o princípio do non bis in idem e permitir uma punição mais severa baseada em um mesmo fundamento, o que é inaceitável em um sistema penal que preza pela proporcionalidade e pela justiça. Embora alguns doutrinadores, como Guilherme de Souza Nucci, considerem que a premeditação possa ser analisada dentro do vetor ‘personalidade’ na dosimetria da pena, tal abordagem ainda enfrenta críticas contundentes pela dificuldade prática e ética em dissociar completamente essa premeditação do próprio dolo.
Por Uma Dosimetria da Pena Mais Justa e Proporcional
A jurisprudência do STJ, ao permitir a valoração negativa da premeditação como circunstância judicial autônoma, ainda que com ressalvas, abre um precedente perigoso para a violação do princípio do non bis in idem. A premeditação não é um elemento dissociado do dolo; é, na verdade, uma de suas manifestações mais claras e intensas. Punir a premeditação separadamente do dolo é incorrer em uma dupla valoração da mesma conduta volitiva, o que é incompatível com os princípios da proporcionalidade e da justiça penal.
É fundamental que a dosimetria da pena seja pautada pela estrita observância dos princípios constitucionais e penais, evitando-se interpretações que possam levar a injustiças. A premeditação, enquanto indicativo da intensidade do dolo, já é considerada na análise da culpabilidade e da própria tipicidade. Revalorá-la de forma autônoma é desconsiderar a complexidade do elemento subjetivo do tipo e criar uma nova forma de agravar a pena que não encontra respaldo em uma interpretação sistemática e garantista do Direito Penal.
Para uma dosimetria da pena verdadeiramente justa e proporcional, é imperativo que se reconheça que a premeditação é parte integrante do dolo, e que sua valoração autônoma configura um inaceitável bis in idem. Além da questão do bis in idem, aceitar a premeditação como elemento autônomo causa insegurança jurídica, pois a dosimetria passa a depender excessivamente da subjetividade judicial, levando a decisões imprevisíveis e contraditórias. Uma alternativa juridicamente mais segura e coerente seria considerar o grau de planejamento, caso realmente relevante, exclusivamente na análise qualitativa do dolo, evitando a duplicidade na análise da culpabilidade. Somente assim garantiremos que a pena aplicada reflita a real reprovabilidade da conduta, sem duplicidades que comprometam a segurança jurídica e os direitos fundamentais do acusado.
Por Ricardo Pereira Cantergi